FRIZA | O mundo que grita mas não escuta


Em Táxi Driver, um clássico de Scorsese, Travis Bickle dirige pelas ruas sujas de Nova York como quem procura um inimigo que ele mesmo inventou. Em certo momento, diz com extrema frieza que é preciso “um dia de chuva para limpar toda essa escória das ruas”. Nesse momento não há espaço para ironia: ele acredita de verdade nisso. É um homem sozinho, paranoico, atravessado por preconceitos raciais e de classe, incapaz de se conectar com o mundo ao redor e por isso, violento. O quanto isso é familiar a você com a nossa sociedade?

A cena em que leva Betsy a um cinema pornô como se fosse um gesto romântico só intensifica essa ruptura: ele não finge desajuste, ele é o desajuste.

Décadas depois, Kurt Cobain sobe ao palco no MTV Unplugged in New York com um tipo diferente de ferida. Sua dor não explode: ela implora por silêncio. Ao contrário de Travis, Kurt não quer vingança nem redenção, só algum espaço para existir sem ser esmagado. Suas canções são quase um pedido de desculpas por estar vivo. E o quanto sofria por não ser compreendido pelos seus fãs, amigos e mainstream. Se Travis responde ao colapso com pólvora, Kurt responde com silêncio.

E entre um e outro, estamos nós. Em 2025, vivemos esmagados entre esses extremos. A polarização política, social e emocional grita como Travis e silencia como Cobain. Somos forçados a escolher lados, a aderir a discursos prontos, enquanto o mal-estar coletivo continua sem nome, sem escuta, sem cura. A maioria das pessoas hoje precisa de um inimigo para alimentar seu ego inflado por uma bolha social. Assim como Travis tinha os seus inimigos, há uma necessidade de impor um silêncio em quem pensa diferente.

Nesse espelho partido entra também o Supertramp. Banda que sou completamente apaixonado e faz parte da trilha sonora maravilhosa que meu pai me apresentou durante meus bons anos criança andando de gol bolinha por aí. Músicas como The Logical Song traduzem essa fratura: a infância promissora que deságua em uma vida “respeitável” e “responsável”, mas emocionalmente falida. A canção ironiza um mundo que ensina a ser lógico, mas não a ser humano. Uma crítica sutil e elegante à mesma sociedade que continua criando outros Travis e matando mais Kurts.

Se Travis desaba com violência e Cobain com melancolia, o Supertramp canta essa necessidade social de te dar um caminho em forma de chacota que precisamos para encarar um mundo tentando nos impor seus valores questionáveis. Travis falha tragicamente em se entender no mundo. Cobain desiste após exaustão. E nós seguimos tentando manter a fachada de que tudo está bem enquanto o caos do lado de fora implode em nós.

No fim de Taxi Driver, Travis aparece limpo, calmo, com o cabelo crescido quase como se nada tivesse acontecido. Mas é justamente aí que tudo se torna mais perturbador: ou estamos vendo o delírio de um homem morrendo, ou a sociedade realmente decidiu perdoá-lo. E talvez nenhuma das opções seja reconfortante ou, pelo menos, não deveria ser.

E no último ato do filme temos Iris, a garota que ele “salva” mas nunca escuta de verdade. De forma brilhante, Scorsese lhe dá esse nome. Ele carrega o símbolo da visão e das camadas que o filme nos dá: íris é o que regula a entrada de luz no olho. Travis, porém, enxerga pouco e escuta menos ainda. Iris expressa vontade de sair daquela vida, e Travis lhe dá o dinheiro para isso mas o faz dentro de um delírio heroico, violento e unilateral. Ele não conversa com ela sobre o que virá depois. Ele a usa como um símbolo para sua própria redenção. E a sociedade, talvez por conveniência, compra esse delírio. Nunca saberemos o que de fato acontece com ela.

Você entende que Iris foi salva ou usada?
Entre o fuzil imaginário de Travis e o violão de Cobain, estamos tentando sobreviver a uma era que grita tanto que já não consegue mais escutar

Bruno Friza é colunistra do Folha Cabista. Professor de Geografia e de Português, ele combina uma visão crítica com uma sensibilidade única, capturando as nuances do cotidiano e das relações humanas.
Apaixonado por viagens e pelo contato com diferentes culturas, ele acredita que cada pessoa carrega uma história única que merece ser compartilhada.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Reset password

Enter your email address and we will send you a link to change your password.

Get started with your account

to save your favourite homes and more

Sign up with email

Get started with your account

to save your favourite homes and more

By clicking the «SIGN UP» button you agree to the Terms of Use and Privacy Policy
Powered by Estatik